Em farmacologia (estudo dos fármacos, medicamentos), idiossincrasia é um tipo de reação ao uso de certos medicamentos. E a melhor forma de compreender como essa reação – a chamada reação idiossincrática – se diferencia das outras é conhecer, antes de tudo, o seu significado.
O significado de idiossincrasia, uma palavra de origem grega, é “característica peculiar”. De fato, o termo se refere à presença de uma característica ou comportamento particular, distinto.
Sendo assim, podemos pensar nesse termo como um sinônimo de peculiaridade ou particularidade.
No contexto do uso de medicamentos (ou seja, em farmacologia), a palavra idiossincrasia tem o mesmo significado. Ela corresponde à resposta anormal de um indivíduo a certos agentes químicos, como, por exemplo, medicamentos. Por isso, nesse contexto, ela é chamada de iatrogenia química.
Ela é, portanto, uma reação anormal a um medicamento. Em outras palavras, é a situação em que um indivíduo, ao utilizar certo medicamento, reage de maneira muito diferente dos demais que recebem o mesmo medicamento.
E essa reação adversa é sempre prejudicial, a ponto de, às vezes, colocar em risco a vida do usuário do medicamento.
Não confunda idiossincrasia com variabilidade (sensibilidade) individual
Por outro lado, a reação idiossincrática não se refere aos diferentes graus de resposta dos indivíduos aos medicamentos. Sabemos que as pessoas reagem de maneira diferente a um mesmo medicamento, e isso é normal.
Afinal, existe o que nós conhecemos como sensibilidade individual, em função da qual um medicamento pode produzir diferentes efeitos em diferentes pessoas.
Por exemplo, um mesmo medicamento pode causar sonolência em uma pessoa e não na outra. Ou ainda pode causar náuseas em uma pessoa e não na outra.
Da mesma forma, pode fazer efeito em uma pessoa, enquanto a outra não sente qualquer diferença. A sensibilidade individual é um fenômeno perfeitamente normal e esperado.
A idiossincrasia ou reação idiossincrática é outra coisa. Ela é uma reação adversa rara, totalmente inesperada, que ocorre somente em indivíduos que têm características realmente incomuns – peculiares. Ou seja, é justamente por conta dessas características peculiares que a reação idiossincrática ocorre.
Qual a diferença entre a idiossincrasia e os outros tipos de efeitos adversos a medicamentos?
Raras e imprevisíveis
Bom, a reação idiossincrática é diferente dos outros tipos de efeitos adversos. Primeiro, porque, como você já viu até aqui, ela ocorre em uma pequena porcentagem de indivíduos. Segundo, porque, justamente por ser muito rara, ela é imprevisível1. Não dá para prever que uma pessoa vai apresentar esse tipo de reação.
Afinal de contas, é nas pesquisas clínicas que se descobre, primeiramente, os efeitos adversos do medicamentos. Em geral, é nesses testes realizados com indivíduos – assim como durante o período em que o medicamento ainda é novo no mercado –, que os pesquisadores identificam os efeitos adversos.
E, como as idiossincrasias são reações, em geral, muito raras, elas não costumam aparecer nem nas pesquisas nem no período inicial de comercialização do medicamento1. Elas acabam surgindo depois, quando enfim algum indivíduo “raro”, com as tais características peculiares, utiliza o medicamento.
Não estão relacionadas a como o medicamento atua para tratar um problema de saúde
Outro ponto que difere as idiossincrasias dos outros tipos de efeitos adversos é o fato de ela que ela não está relacionada às propriedades farmacológicas conhecidas do medicamento.
Em outras palavras, elas não estão relacionadas com a forma que o medicamento atua para tratar um problema de saúde. A manifestação dela depende, na realidade, das características químicas do medicamento1.
São, de certa forma, independentes da dose
Além disso, é também diferente a forma com que a idiossincrasia se relaciona com a dose do medicamento. Afinal, a toxicidade dos medicamentos é, em geral, dose-dependente, isto é, depende da dose de medicamento utilizada.
Isso significa que, para reações dose-dependentes, a toxicidade aumenta conforme eleva-se a dose. Dessa maneira, a maioria dos indivíduos é afetada quando as doses são suficientemente altas1,2.
Em contraste, as idiossincrasias podem se manifestar mesmo em doses baixas ou naquelas dentro da faixa terapêutica (doses normais). Por isso, costuma-se dizer que elas não são dose-dependentes.
No entanto, em indivíduos que são suscetíveis – aqueles que possuem as tais características peculiares –, a toxicidade provavelmente aumenta com a dose.
E, curiosamente, esse tipo de reação pode se manifestar até mesmo como uma insensibilidade extrema às doses altas dos fármacos3. Isso também como resultado das características peculiares desses indivíduos.
“Outra característica das reações idiossincráticas é que o risco muitas vezes não parece aumentar com a dose. Isso levou algumas pessoas a caracterizar essas reações como independentes da dose; entretanto, nenhum efeito biológico é independente da dose. O que é verdade é que a maioria dos pacientes não experimentará uma idiossincrasia em nenhuma dose (…)” (Uetrecht e Naisbitt, 20131).
Então, resumindo, em farmacologia, essas reações apresentam as seguintes características:
- são imprevisíveis;
- não estão relacionadas ao mecanismo de ação (propriedades farmacológicas) do medicamento que as causam;
- não requerem altas doses para se manifestar;
- são raras, isto é, ocorrem em uma pequena parcela da população (somente nos indivíduos que possuem características peculiares).
E, afinal, que características peculiares são essas?
As tais características peculiares são geralmente de origem genética. Então, certas pessoas têm características raras, determinadas geneticamente, que fazem com que seu corpo reaja de forma diferente a certos medicamentos.
Em geral, devido a essas características, o corpo desses indivíduos processa o medicamento de maneira diferente, gerando, por exemplo, substâncias tóxicas – o que não aconteceria no organismo de quem não tem essas características peculiares.
Muitas reações idiossincráticas são iniciadas por substâncias tóxicas, ou seja, metabólitos (produtos) reativos de medicamentos, que causam diretamente dano às células ou desencadeiam uma resposta imunológica4. O fígado, a pele, a medula óssea e as células sanguíneas circulantes são alvos comuns da toxicidade idiossincrática dos medicamentos2.
Metabólitos reativos geralmente têm uma meia-vida muito curta (duram pouco). Por isso, acabam causando dano no mesmo local onde se formam, como no fígado, por exemplo, onde frequentemente há extensa formação desses metabólitos4.
Porém, em alguns casos, ocorre dano externo ao fígado, em outras áreas do corpo. Nesse caso, isso se dá de várias maneiras. Acontece, por exemplo, quando metabólitos reativos se formam em vários locais do organismo. Também ocorre quando metabólitos de longa duração viajam do fígado para outros órgãos ou quando uma resposta imunológica iniciada localmente se espalha sistemicamente4.
Referências:
1.Uetrecht J, Naisbitt DJ. Idiosyncratic adverse drug reactions: current concepts. Pharmacol Rev 2013;65(2):779-808. Disponível em https://pharmrev.aspetjournals.org/content/65/2/779
2.Trepanier LA. Idiosyncratic Drug Toxicity Affecting the Liver, Skin, and Bone Marrow in Dogs and Cats. Vet Clin Small Anim 2013;43:1055–1066. Disponível em https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1528-1167.2007.01041.x
3.Klaassen Curtis D. Fundamentos de Toxicologia de Casarett e Doull. 2a ed. Porto Alegre: AMGH, 2012.
4.Zaccara G, Franciotta D, Perucca E. Idiosyncratic adverse reactions to antiepileptic drugs. Epilepsia. 2007 Jul;48(7):1223-44. Disponível em https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1528-1167.2007.01041.x
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